Os especialistas em religião afirmam que, quando há encontro entre duas crenças, há contribuição mútua. O almoço da Sexta-feira da Paixão na Bahia é uma amostra dessa afirmação. No encontro entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, o costume de comer peixe vem da primeira. Já o azeite de dendê, tão usado no candomblé, monopolizou praticamente todo o cardápio.
Diferentemente do que costuma ser chamado de sincretismo, o termo associação religiosa é muito mais rico e abrangente para explicar essa interação culinária. Isso porque ele demonstra não uma substituição de uma fé pela outra, mas uma ressignificação a partir da convivência em comum.
É muito claro para o povo de santo que quem está sendo celebrado na Sexta-feira Santa não é Oxalá. Por isso o azeite de dendê está tão presente. É o princípio do igbó, explica o historiador, professor universitário e religioso do candomblé Jaime Sodré.
O termo igbó, em várias culturas africanas de língua iorubá, que são originárias de onde hoje está a Nigéria, pode ser traduzido como visitante ou estrangeiro. Ou seja, para esses povos não havia problemas em reverenciar um deus de fora.
O termo igbó, em várias culturas africanas de língua iorubá, que são originárias de onde hoje está a Nigéria, pode ser traduzido como visitante ou estrangeiro. Ou seja, para esses povos não havia problemas em reverenciar um deus de fora.
Visitante - Salvador foi um porto em que etnias de língua iorubá chegaram em grande número. Uma das mais conhecidas e presentes tradições do candomblé, a ketu ou nagô, é originária dessa cultura. O uso do dendê, típico entre esses povos, encontrou-se com o costume católico de comer peixe nesse período.
O peixe é um símbolo cristão que tem muita força simbólica, explica o doutor em antropologia, professor da Ufba e religioso do candomblé Vilson Caetano. A força simbólica do peixe para os cristãos vem das letras com que é escrito em grego: IXTIS. Elas indicam Jesus Cristo, Deus, Filho, Salvador.
A partir do hábito católico de comer peixe na Sexta-feira da Paixão, o africano do litoral acabou acrescentando um dos seus ingredientes próprios: o dendê, acrescenta Caetano.
Um dado interessante é que nesse hábito não há a tentativa de misturar rituais religiosos. Mesmo porque há o entendimento de que Oxalá não está presente não só devido ao azeite de dendê, mas também por ser uma data que lembra a morte.
Separação - Para as religiões de matriz africana, há uma clara separação entre as divindades que são energia, os orixás, inquices e voduns, e os eguns, que são provenientes de pessoas que já passaram pela terra e que têm um culto muito específico, acrescenta Jaime Sodré.
Vilson Caetano salienta que a morte é um dos temas mais significativos e importantes no universo afrorreligioso. O entendimento é de que a morte é a vida que se prolonga de outra forma. Portanto, é inegável que o universo simbólico católico foi ressignificado pela visão das religiões de matriz africana, diz o antropólogo.
Ele conta, inclusive, que sua reflexão sobre esse toque africano na data foi ortalecida ao ouvir uma ialorixá chamar a Sexta-feira Santa de maior. Inclusive essa era uma expressão muito em uso pelos mais velhos e que, hoje, já não é tão constante. Mas isso significa, a meu ver, que existe a questão do respeito pela fé do outro. Há também uma canção do culto de caboclo que diz: o dia maior da aldeia/ é o dia da Sexta-feira, acrescenta o antropólogo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário